Morrer duas vezes



Quando era miúda sonhava frequentemente com a minha própria morte. Num desses sonhos, que agora recordo, morri duas vezes num curto espaço de tempo.
Primeiro, estava em frente à que era então a casa dos meus avós maternos, e vi passar um grupo de jovens com mau aspecto, vestidos como artistas de circo. Tinham roupas largas e coloridas, e nas cabeças traziam turbantes e chapéus vistosos. Um deles, de cabelo comprido e barba por fazer, trazia na mão uma espécie de foice, muito afiada e suja. Eu, do cimo da rampa que dava acesso à casa, observava a sua passagem, surpreendida por tão curiosas personagens e pelos seus trajes em cores berrantes, mas fundamentalmente pela enorme faca que aquele que parecia ser o líder do grupo trazia na mão.
Foi naquela altura que deram pela minha presença, e o homem da faca perguntou-me o que queria. Não respondi, por medo que, fosse qual fosse a minha resposta, o homem fizesse descer sobre mim aquela foice medonha, suja e manchada de um misto de sangue e ferrugem.
Pois se foi por não querer ofendê-lo com qualquer possível resposta que me calei, foi exactamente assim que o ofendi e, como temia, o homem fez baixar sobre mim a sua ira, desferindo-me vários golpes com a medonha faca.
Naquele momento caí, ensanguentada e desvalida, no chão de terra daquele caminho, enquanto das casas mais próximas corriam pessoas para me acudir. Quando uma dessas pessoas se debruçou sobre mim, para ver se ainda respirava, disse-lhe “morri”, e fechei os olhos.
Nesse momento, sonhando-me ali estendida, morta e sem salvação possível, vi brotar das minhas pernas e dos meus braços, como pelos, centenas de pequenas minhocas, que rapidamente cresceram até atingirem o tamanho de pessoas e começaram a perseguir todos os que passavam por ali.
Nunca cheguei a saber o que me aconteceu neste sonho, pois enquanto se desenrolava aquela batalha entre humanos e minhocas gigantes, permaneci inanimada.
Mas o sonho não acabou assim. Minutos depois, sem ter percebido a transição daquele chão de terra para outro lugar, nem como tinha “ressuscitado” daquela morte, estava agora à porta de casa de um colega de escola que, por aqueles dias, tinha faltado às aulas porque acometido de uma meningite. E foi quando ele abriu a porta que morri pela segunda vez. Não de um eventual contágio da doença, mas porque esse meu colega assomou à porta de casa com uma enorme faca de cozinha na mão e me matou ali mesmo, sem motivo e sem intervenção de ninguém…

 Carla Teixeira, Porto (Porto), Portugal

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